Marcos Brandalise | 27/03/2020 18:30

27/03/2020 18:30

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Tragicrônica da vida real apresenta: “A carreata e o funeral”

Naquele período de pandemia, em pleno pico de superlotação de leitos hospitalares, todos andavam muito apreensivos. Era de casa para o trabalho e do trabalho para casa, quando muito uma passada mais do que rápida no mercado ou na farmácia. As redes sociais tornaram-se a melhor companhia e distração, canal de entretenimento, informação, comunicação, discórdia e passa tempo.

Naquele dia, porém, havia um grande alvoroço nas redes sócias. A ala dos indignados resolveu promover um movimento para destacar sua insurgência com toda aquela barbaridade que ocorria. Afinal, “temos de achar um culpado”. Ora era o STF, ora os gestores, ora o morcego da China, ora o dólar, ora o tempo úmido, ora o preço do soja etc. Foi então que se decidiu organizar uma carreata para o dia seguinte, daquelas típicas que pudesse chamar a atenção para a pauta. Às 16h, na praça, todos caracterizados, inclusive com muitos fogos, bandeiras, som alto e buzinas intermitentes.

Na noite da véspera à carreata, enquanto todos estavam entrincheirados em seus lares, toca o telefone.

Cara, é o Nuno. O Zé morreu. O vírus pegou ele. Tava na UTI mas não aguentou.”

“Não pode! Sério? Mas era novo, tinha nossa idade. Que eu saiba nem comorbidade tinha. Era meio atrapalhado, mas daí a morrer…”

Pois é. Triste perder um amigo de infância né. Amanhã às 16h passo aí e vamos no enterro.”.

No outro dia, então, como combinado, os amigos se encontraram e foram rumo ao cortejo. “Vamos só no enterro né, velório aglomera demais e pode ser que peguemos o vírus”. Ambos queriam prestar homenagem, mas também nem tanto assim. Seguiram. Um pouco rindo, um pouco falando e, quando lembravam, rezavam também pra alma do amigo.

A fila de veículos era enorme, várias pessoas queriam, de alguma forma, despedir-se do amigo/ente querido que tão cedo partiu para a morada eterna. Não se enxergava o início e nem o fim do cortejo. Enquanto estavam naquela fila de veículos rumo ao cemitério, foram rememorando fatos vividos com o defunto, desde a infância até os últimos contatos que tiveram com ele.

Eis que no entroncamento de duas principais vias daquela cidade de aproximadamente 50 mil habitantes, o cortejo fúnebre cruza com a carreata. Entre um carro que seguia e outro que descia, o inevitável aconteceu: As duas “carreatas” se misturaram. O cortejo passou ser composto, dali em diante, também por caminhões, carros e motos caracterizados com bandeiras, som alto e muitos foguetes. De outro lado, alguns veículos que estavam na fila do rabecão, acabaram se perdendo e entrando na carreata.

Mas que estranho isso né cara. Tu vê, os cara vem prum enterro soltar foguetes? Tá certo que fazia tempo que não ia a um enterro, mas não sabia que essas coisas mudavam tanto assim

Nem me fale. Acho que nada é estranho prum morto que em vida também foi meio estranho né (riram). Mas veja que além desses foguetes, também me chamou a atenção aquele cara em cima no capô do caminhão gritando ‘chupa gripezinha’. Confesso que achei meio agressivo com o Zé”.

E assim foram até o cemitério, entre uma reza, um foguete, uma lágrima e um buzinaço, chegaram à sepultura que estava à espera de mais um óbito por covid-19.

E aquilo ficou mais estranho quando todos se aglomeraram ao redor da lápide, pois até os manifestantes da carreata não perceberam a confusão e também acabaram se colocando ao redor do caixão. Enquanto alguns beatos e beatas entoavam um “segura na mão de Deus” e “no céu com minha mãe estarei”, os familiares choravam inconformados, o pedreiro-coveiro raspava a colher com cimento na pedra enquanto pitava um cigarro e alguns soltavam foguete e gritavam “cloroquina salva vidas!”.

No outro lado da cidade a carreta continuava mesmo após o término do enterro, com alguns familiares do morto rodando por horas noite adentro na expectativa de chegar ao cemitério.

Até hoje há quem diga, inclusive, que o caixão ficou na carreata…também há quem diga que nem sequer houve morte e o Zé continua vivo….

Qualquer semelhança a nomes e fatos é mera coincidência.

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